Titularização: rapidamente<br>e em força!
Custa usar como título esta tirada de má memória, mas é seguramente aquela que melhor caracteriza o que se passou na passada semana no Parlamento Europeu, na Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários. No dia 8 de Dezembro – sério candidato ao dia mundial da amnésia – a grande «coligação» do PPE (direita) e da social-democracia europeia aprovou um conjunto de diplomas destinados a relançar «rapidamente e em força» a titularização, mostrando uma total subserviência aos grandes lóbis financeiros que têm vindo a fazer uma enorme pressão para a aprovação destes diplomas.
A titularização consiste numa espécie de alquimia financeira que reúne créditos detidos pela banca através da concessão de empréstimos, criando novos produtos financeiros que depois lança no mercado. Num exemplo simples e ilustrativo, imagine que um indivíduo A empresta um determinado montante a duas pessoas B e C, acertando com estes um plano de reembolso dos empréstimos. A titularização consiste na reunião destes dois fluxos de pagamentos e na venda por parte de A deste produto financeiro a um quarto indivíduo que passará a receber as prestações de B e C.
Num exemplo simples, esta prática até pode parecer inócua. No entanto, a verdade é que a criação e circulação destes produtos esteve na base da grande crise financeira de 2008 cujos efeitos ainda hoje perduram na economia. As razões são fundamentalmente duas. Em primeiro lugar, existe um conflito de interesse óbvio entre quem lança estes produtos e quem investe neles. Ou seja, o que aconteceu na prática foi que a banca usou a titularização para limpar os seus balanços, vendo-se livre do crédito mal parado e sem a mínima preocupação com os investidores a quem vendia estes produtos. Tudo isto contou com a cumplicidade criminosa das agências de rating. Sabemos hoje que títulos financeiros classificados como AAA (notação máxima) continham, como activos subjacentes, créditos imobiliários de alto risco. Em segundo lugar, esta prática, como facilmente se compreende, não acrescenta nada de real, apenas cria e multiplica valores puramente fictícios a partir de um mesmo activo subjacente. Ou seja, a titularização aumenta de forma exponencial o risco sistémico, os efeitos de contágio (efeito «dominó») e amplia de forma desmesurada o impacto das crises financeiros. Foi precisamente o que aconteceu em 2008.
Mas pelos vistos nada disto impressiona os deputados do PE que aprovaram uma verdadeira aberração financeira à qual deram o pomposo nome de «Titularização Simples Transparente e Estandardizada». Ignorando tudo o que se passou na última crise financeira e recusando ouvir os múltiplos apelos de economistas e organizações, o Parlamento Europeu aprovou um conjunto de textos legislativos que por um lado pretende regular esta delinquência financeira, e por outro, dando por adquirida esta operação de reabilitação da titularização, diminuindo ainda as exigências em matéria prudencial (níveis mínimos de capital para compensar eventuais perdas)!
Os deputados do PCP posicionaram-se contra a existência destes produtos financeiros, desmontando um a um todos os argumentos que apresentavam a titularização como necessária e obrigatória para relançar a economia e melhorar o financiamento às PME. Demonstrámos que mesmo estes regulamentos, estes produtos eram tudo menos simples e transparentes. Basta uma simples leitura superficial do regulamento para se perceber da complexidade e da opacidade com que estes produtos são montados e avaliados, com categorias de risco diferenciadas determinadas pela instituição emissora, e em claro benefício próprio. Ficou claro que as PME não iriam beneficiar em nada porque a esmagadora maioria dos produtos titularizados provêm de empréstimos imobiliários ou do crédito ao consumo. Em contrapartida, os grandes grupos financeiros serão seguramente os grandes beneficiários destes passos, o que demonstra mais uma vez a quem serve e para que serve a União Europeia.
Com a reabilitação institucional das operações de titularização que estiveram na origem da actual crise financeira iniciada em 2008 com a falência do Lehman Brothers, verdadeira especialista na matéria, vamos assistir a uma nova aceleração do processo de financeirização da economia, com os bancos a assumirem riscos inaceitáveis na concessão de empréstimos, contribuindo assim para novas e crescentes bolhas financeiras. O que a economia precisa não é seguramente de mais engenharia financeira que sustente a economia de casino. O que a economia precisa é de um sistema bancário forte e alinhado com estratégias de desenvolvimento que tragam mais bem-estar às populações e aos trabalhadores. Pela parte do PCP reafirmamos que só o controlo público sobre o sistema financeiro poderá trazer esta estabilidade e este alinhamento.